terça-feira, 20 de julho de 2010

HISTÓRIAS DO RECIFE - Capítulo II - A Prostituição Feminina

O Recife e a Prostituição



O resgate histórico do Recife me parece uma das tarefas mais difíceis e complexas. Seria necessário recorrer aos velhos registros, percorrer museus e arquivos públicos e conversar com pessoas de diferentes idades, que viveram diferentes épocas, na tentativa de encontrar informações precisas, além de um eixo matriz que possibilitasse uma definição cronológica dos fatos. Não que tal tipo de investimento acadêmico não me encante ou fascine, contudo, considero não ser esse o meu objetivo no momento. Assim optarei apenas por definir um viés pelo qual possa correlacionar história e mudanças (ou transformações) sociais ao longo dos anos. Também confesso me sentir mais seguro e confortável ao abordar um tema que pretensamente acredito dominar ou conhecer. Além de que, percebo na prostituição um elemento de fundamental importância para as possibilidades de se recontar e reconstituir as histórias de qualquer cidade brasileira. Considerando ainda a contemporaneidade de suas origens, prostituições e cidades misturam-se e confundem-se no tempo, e de certa forma, tornam-se indissociáveis.



Outro fator que julgo importante na escolha do “sexo pago” como viés para recontar a história de Recife, refere-se ao fato de que obrigatoriamente nos dias atuais se faz necessário falar de prostituição no plural. Contar das prostituições requer a reavaliação de antigos conceitos, ou como diria, preconceitos (que nada mais são do que conceitos previamente estabelecidos, alguém discorda?). Também se faz necessário considerar vários aspectos e fatores que contribuíram e contribuem para que a prática sexual comercial tenha se consolidado como uma das atividades comerciais mais antigas do mundo. E aqui esclareço que prefiro adotar atividade comercial no lugar de profissão porque muitas das pessoas que se prostituem, sejam mulheres, homens ou travestis, não a percebem como trabalho ou oficio, mas apenas como atividade temporária, em atendimento a determinados objetivos.



Inicio então evidenciando oposição ao que, de certa forma, todo mundo reconhece como verdade absoluta, e ao que vários estudos sobre a prostituição brasileira fortaleceram em nosso senso comum: a mulher como principal executora e principal personagem no cenário das práticas sexuais comerciais (Rago, 1996; Mazzieiro, 1998; Costa, 2004, Pasini, 2005). Alguns autores, por exemplo, ao analisarem as representações sociais da prostituição sob a ótica feminina, destacam a prática sexual comercial como uma atividade milenar, que tradicionalmente tem subvertido o exercício “controlado” da sexualidade via instituições sociais (Guimarães e Merchán-Hamann, 2005). Destacam ainda que em todo o percurso histórico do desenvolvimento brasileiro é facilmente verificada as várias tentativas de controle implementadas, ora pelas instituições religiosas, ora pelo Estado. E logicamente, neste sentido, acredito ser importante observar que a trajetória da concepção da prostituição no Brasil sofreu transformações marcantes de acordo com os conceitos e padrões sociais, bem como de conformidade com os fatos históricos de cada época, indo da “satanização”, até sua interdição através das leis proibitivas dos códigos civis.



Sabe-se, por exemplo, que a partir do final do século XIX, questões relativas ao comércio sexual na América do Sul estiveram diretamente relacionadas às questões do tráfico de mulheres européias, que eram trazidas de seus países de origem para se prostituir nas cidades portuárias (sim, também fomos vilões nessa história, e de certa forma, ainda o somos). Assim o Brasil esteve por muito tempo inserido no roteiro do tráfico internacional de mulheres, consideradas “escravas brancas”, que já nesta época se consolidava também no Novo Continente (alguém estudou isso nas aulas de história?). Alguns estudos ainda apontam que especificamente em cidades como Buenos Aires, na Argentina; e Rio de Janeiro, no Brasil, os debates sobre a prostituição se misturavam às discussões relativas ao trabalho doméstico infantil, a escravidão, as práticas coercitivas, bem como, sobre a intervenção do próprio Estado nas relações de trabalho (Pereira, 2005; Guimarães e Merchán-Hamann, 2005).



Na capital carioca, por exemplo, já na década 1840 os médicos passaram a conceber e a estudar a prostituição como “fato social”, utilizando-se da escravidão como referência obrigatória à metáfora da degradação moral. Destaca-se que esta correlação provavelmente tenha se dado devido ao fato da prostituição ter se constituído durante todo o período de regência da Corte Imperial, quase que exclusivamente por escravas negras (quem viu isso em história do Brasil?).



A partir de 1870, sobretudo com a chegada de um imenso contingente de trabalhadores europeus, tais metáforas tornaram-se generalizadas, como referências diretas à prostituição de mulheres estrangeiras. Assim, a expressão “escravidão branca” apesar de servir também para denunciar a exploração capitalista do trabalho feminino e infantil, por parte dos movimentos operários da época, tornou-se predominantemente associada à prostituição exercida forçosamente por mulheres européias em outros continentes (Cunha, 1845; Cf. Pereira, 2005). É obvio de se imaginar que a prostituição tenha causado diferentes repercussões em diferentes países da América, e que seus resultados variaram de acordo com as dimensões políticas e históricas de cada país. Desta forma, podemos sugerir que os diferentes fatores relacionados a significados particulares de cada cultura, configurações de gênero, bem como as práticas do comercio sexual de cada local, influenciaram diretamente na acomodação, mais ou menos conflituosa da prostituição em suas sociedades.



Mas no Brasil especificamente, constata-se que enquanto os “médicos e os homens da lei” se preocupavam em discutir a regulamentação da prostituição como medida profilática, e o tráfico de mulheres brancas como medida moralizante, as negras escravizadas permaneciam nas janelas das ruas centrais dos grandes cidades, tendo que se submeter à prostituição por imposição de seus senhorios (Será que já dá para se ter uma idéia sobre a importância dos tratados internacionais sobre direitos humanos?).



Ao se analisar o aspecto relacional entre a prostituição e o mundo boêmio nas grandes cidades brasileiras, podemos de certa forma, estabelecer o período de 1890 a 1940 como marco para o nascimento das antigas zonas de meretrício. Dentro desse contexto histórico, verifica-se que o processo de industrialização das cidades se configurou como principal fator desencadeante da imigração estrangeira para o Brasil, causando nos grandes centros urbanos um crescimento demográfico vertiginoso que exigiria das autoridades públicas o desenvolvimento de projetos e modelos de urbanização que possibilitassem a higienização das cidades. É aproximadamente neste período de ebulição que surgem, principalmente na capital paulista (mas também em Recife e cidades desenvolvidas), as confeitarias, os cafés-concertos, o teatro e o cinema, que se destinavam exclusivamente à diversão da família burguesa tradicional (Rago, 1996).



Fora desse eixo, quase que simultaneamente, foram instalados nas cidades os cabarés afrancesados, os clubes e os bordéis de luxo que se destinavam às prostitutas francesas, ou “afrancesadas”, que vinham em busca dos grandes e afortunados coronéis, que chegavam mesmo a “montar casa” para suas amantes. Este período parece também servir como marco da emergência das práticas sexuais de caráter comercial, desenvolvida por mulheres em toda a extensão do país, tanto que já no final do século, a prostituição é descrita por um dos maiores criminologistas da época como "um fenômeno social fatal necessário, mas que precisava ser controlado” (Cândido Motta, 1897; Cf. Mazzieiro, 1998). O então delegado Cândido Motta, também foi o responsável por instaurar no Brasil o primeiro instrumento legal de regulamentação da prostituição, composto por 220 regulamentos. E tal instrumento objetivava não apenas delimitar os espaços e os horários em que as prostitutas podiam exercer suas atividades, mas também, estabelecia as indumentárias e padrões de comportamentos para a prática da prostituição, com único intuito de resguardar a decência moral (Rago, 1996; Mazzieiro, 1998).



Observa-se então, que o cerne da questão não se concentrava na proibição da prática, mas unicamente na regulamentação da sexualidade feminina e no controle da prostituição. Era necessário estabelecer regras de boa convivência, conter os excessos e legitimar a prostituição feminina enquanto prática necessária que “explicava-se pelo derivativo que oferece às excitações genéricas muito intensas, sem a qual, não respeitariam, talvez, nem a infância, nem o lar doméstico" (Cândido Motta, 1897; Cf. Mazzieiro, 1998). E o Brasil, seguindo o modelo de controle instituído nos Estados Unidos (parece lógico, não?) nos anos cinquenta, tornou a proteção das crianças o principal argumento, como forma eficaz, para o apelo ao engajamento da população no enfrentamento à prostituição e à obscenidade; bem como, eficiente estratégia de controle e combate ao sexo comercial. A proteção das crianças configura-se ainda hoje como tática capaz de provocar a histeria erótica de massa, desencadeando um pavor contra a pornografia infantil, que tornaria os pedófilos tão estigmatizados quanto os homossexuais e os comunistas da era pós-guerra (Rubin, 1984).



E assim, os pressupostos higienistas impetraram à figura da prostituta um caráter inimigo a ser combatido por favorecer a degradação física e moral do homem, e por extensão, destruir as crianças e as famílias (Costa, 2004). Por isso se faria necessário impor o respeito à sexualidade dentro dos lares, para que as relações sexuais se mantivessem e se realizassem em conformidade com os padrões tradicionais e “naturais”. Para tanto os “desvios” precisaram ser combatidos e mantidos sobre controle rígido, a fim de se preservar e se garantir a reprodução vinculada à “sexualidade sadia” (entendem agora a relação Estado-Igreja?). Era preciso que o submundo da sexualidade fosse exercido, mas mantido distante dos lares, onde o sadio e o desvio não poderiam co-existir num mesmo espaço, “pois que não caberiam no mesmo teto, nem na mesma rua” (Mazzieiro, 1998).



Verificamos então que as formas institucionais concretas da sexualidade, em determinados momentos e lugares, sempre estiveram imbuídas de conflitos de interesse e manobras políticas (Rubin, 1984). Em São Paulo, por exemplo, por volta de 1913, com o acelerado desenvolvimento do comercio na capital, a prostituição tornou-se um problema de ordem pública, para o qual se fez necessário à adoção de medidas urgentes por parte do Estado, no sentido de reorganizar e “limpar” a cidade. A reforma urbana, iniciada em 1911, fez com que muitas casas particulares de prostituição localizadas na antiga zona de meretrício, onde “em cujas janelas, um pouco ocultas pelas venezianas, apareciam rostos de mulheres muito pintadas, convidando quem passasse a entrar” (Paulo Duarte, 1975; Cf. Rago, 1996), chegassem a desaparecer.



A preservação da moral figurava como principal justificava para as intervenções da policia, que passou a deter e, muitas vezes, fichar as prostitutas na Delegacia de Costumes. Assim, o período que marcou o fim dos tempos áureos da prostituição paulista caracterizou-se tanto pelo fechamento de várias casas noturnas, clubes e bordéis de luxo, bem como pela ação violenta da polícia, provocando o deslocamento das prostitutas para os bairros mais afastados do centro comercial.



Porém o período mais drástico, no que se refere à intervenção do Estado em relação à prostituição no Brasil, se deu durante a instalação do Estado Novo. Por volta de 1940, a prostituição em São Paulo foi confinada no bairro judeu do Bom Retiro, enquanto que no Rio de Janeiro, as prostitutas foram destinadas às regiões do Mangue. Com a ditadura, deu-se inicio ao processo de segregação e marginalização da prostituição no país, onde o fechamento das zonas de meretrício em 1954, por decisão do governo, fez com que as prostitutas passassem a fazer o “trottoir” nas ruas de diversos bairros paulistas e ficassem mais expostas e susceptíveis à violência policial (Rago, 1996). Surgia então, o artigo 282 do Código Penal Brasileiro, que passou a servir de base para a definição de punições a todo e qualquer cidadão que “ofendesse os bons costumes com exibições impudicas, atos ou gestos obscenos, atentatórios ao pudor e praticados em lugar público” (Mazzieiro, 1998).



Se sob a ótica legal, a prostituta tornou-se desqualificada e imoral e sua prática equiparada à vagabundagem e enquadrada como crime; no discurso médico, até meados da década de sessenta, as prostitutas foram classificadas e categorizadas como seres anormais, que padeciam da loucura ou degeneração inata (reducionista, não?). A construção dos estigmas relacionados à prostituição, bem como os mecanismos de respostas sociais de discriminação e preconceitos às práticas sexuais comerciais desenvolvidas ao longo dos tempos em nossa cultura resultou de sucessivos fatos históricos que centraram na “mulher de vida fácil” a responsabilidade pela disseminação de doenças adquiridas através do ato sexual (explicado porque Recife já foi denominado a Venérea Brasileira?).



De acordo com os pressupostos médicos e morais do início do século passado, a “meretriz” corrompia a moral feminina com seu comportamento sexual descontrolado. Ao manter relações sexuais por dinheiro e entregar-se à masturbação, à sodomia, e práticas antinaturais do gênero, a prostituta figurava como manual vivo da forma anti-higiênica de ser mulher. Assim, imaginou-se que essas perverteriam a moral da “mulher-mãe” com seu comportamento “incorrigível” e “irresponsável” para com a vida dos filhos, abortando-os, abandonando-os à Roda (excelente estratégia de proteção as crianças, criada pela Igreja Católica, não?) e expondo-os à imoralidade (Guimarães & Merchán-Hamann, 2005; Jurandir Costa, 2004).



Por sua vez, o discurso médico promulgava que o luxo era o pai espiritual da “mulher mundana”, e em sua esteira vinham os falsos prazeres, a moda, as diversões e todo o cortejo de condutas volúveis que impediam a mulher de amamentar (Costa, 2004). Em outras palavras, a prostituta por fim, corrompia a moral feminina por influenciar a mulher de classe média através do culto ao corpo, dos caprichos eróticos e da luxuria. Nesta ótica, a prostituição assume um caráter pejorativo e desviante da moral social, uma vez que, a sexualidade não estava estruturada a partir das relações de parentesco típicas, valorizadas pela moral dominante de uma sociedade pautada em relacionamentos estáveis. A moralidade social condenou a troca de parceiros sexuais ao estabelecer para a “mulher de bem” o casamento como modelo, e a reprodução como finalidade natural do sexo. Completando a tríade defensora da moral e dos bons costumes, o discurso religioso imputou as prostitutas o pecado por amar o luxo e a ociosidade, recaindo-lhes ainda, a acusação de atentar contra a mulher pobre e suas filhas, que atraídas pela luxuria e vaidade, poderiam vir a se prostituir também (Costa, 2004).



Especificamente em Recife, resgatar a história da prostituição torna-se um desafio quase impossível de concretização. Primeiro, por não se dispor de uma quantidade considerável de documentos e registros oficiais; e segundo, porque os poucos registros disponíveis centram-se no lado marginal vinculado a prática sexual comercial. Assim, pouco se sabe, mas muito se fala, sobre a dinâmica da prostituição que nos dias atuais tem provocado alterações significativas no cenário urbano e, por extensão, no comportamento dos recifenses. Saliento então, que as informações aqui apresentadas são resultado dos relatos de antigos moradores da cidade, boêmios e prostitutas que circulam pelas ruas e espaços de prostituição, bem como do garimpo realizado na internet e documentos confinados nos arquivos públicos, durante minha pesquisa de mestrado.



Na pouca literatura disponível, encontrei alguns dados que nos servirão de base para caracterizar o passado da capital pernambucana. Descobri por exemplo, que no século XVI o Bairro do Recife chegou a concentrar uma população de 27 mil pessoas por quilômetro quadrado, configurando-se como uma das maiores densidades demográficas já registradas pela história da humanidade (incrível, não?). Até o século XIX, tanto o lixo quanto a sujeira invadiam suas ruas estreitas. Para se ter uma breve idéia sobre a falta de infra-estrutura urbanística da época, destaca-se que a Rua do Bom Jesus era a mais larga do bairro. Nas demais as pessoas se acotovelavam, produzindo sujeira e caos (Será que mudou alguma coisa nos dias atuais? Talvez se deva perguntar ao atual prefeito João da Costa).



Nos registros do Instituto de Pesquisas Sociais da Fundação Joaquim Nabuco, constatei que no Porto do Recife, os boêmios perambulavam pelas madrugadas em busca das meretrizes, de bares, de bebidas alcoólicas, e/ou de amigos, e que as mulheres do bairro eram chamadas por Ascenso Ferreira (compositor, conhecem?) de “damas da noite” (Vainsencher, 2008). Durante três séculos o Porto do Recife, antes conhecido como “Arrecifes dos Navios” concentrou a vida e o cotidiano público e privado da sociedade pernambucana. A área da Alfândega era diariamente frequentada por homens e mulheres, ricos ou pobres, incluindo também os jagunços, escravos, meretrizes e mascates. Assim, verificamos que a vida noturna do bairro portuário sempre esteve ligada à boemia, às mulheres, à música, e, por que não dizer, também à prostituição, bem antiga em nossa velha metrópole (Cavalcanti, 1998).



Já no período de 1909 a 1927, o bairro passou por diversas reformas urbanas e no final da década de vinte, seu estilo arquitetônico inédito, foi classificado pelos especialistas como Eclético Novo-Recife (sem querer ser presunçoso, mas acho que sempre fomos o berço da arquitetura moderna brasileira). Em meio a toda essa modernização, o “Chanteclair” se destacava (Quem consegue me dizer quando serão concluídas as infindáveis obras de reforma? Alguém ainda lembra quando começaram?), instalado num conjunto de prédios formado por sete blocos independentes que foram projetados para atender às necessidades do porto do Recife. Concebido inicialmente como armazém, após sua desativação o prédio foi doado a Santa Casa de Misericórdia e transformado em uma das mais antigas e importantes casas de diversão da cidade.



No inicio de 1942, a sociedade pernambucana foi fortemente influenciada pela chegada das tropas americanas ao Porto do Recife, devido a Segunda Guerra Mundial. Os modos, procedimentos sociais e costumes da vida noturna dos recifenses foram radicalmente alterados e a história do Chanteclair passou a se confundir com a história boêmia do velho bairro e com a prostituição da cidade. Porém na década de sessenta, sofreu seu maior declínio, tornando-se o principal ponto de prostituição da região portuária.



No térreo, foram instalados os estabelecimentos comerciais e nos dois andares superiores as pensões onde as prostitutas moravam e recebiam seus clientes. Um dos empreendimentos comerciais mais badalados do local era o “Bar e Restaurante Gambrinus”, onde foi decretada a Constituição da República Independente do Recife Antigo, proclamada por um de seus ex-frequentadores mais assíduo e ilustre. Era o então ex-ministro Gustavo Krause que estabelecia que "no Bairro do Recife, situado do lado de baixo do Equador, ficava abolido o pecado".



Inaugurado em agosto de 1930, segundo o jornalista Sidney Motta, do Jornal o Beijo da Rua (2002), o Gambrinus foi o bar mais antigo do Bairro do Recife até o ano 2000, quando foi obrigado a fechar as portas para a restauração do Chanteclair (respondido as perguntas anteriores?). Em entrevista ao jornalista, o último proprietário do Gambrinus, Fernando Ribeiro Pereira, registrou uma das melhores passagens do local, destacando que em 1968, em visita a nossa cidade, a Rainha da Inglaterra ao ver tantas mulheres nas janelas, acenou por acreditar que estivesse sendo homenageada: “Quando a rainha passou, ela acenava para o alto. Para as meninas, sem saber que eram as putas e que sempre ocuparam os casarios antigos do bairro” (Motta, 2002).



Chamo a atenção para o fato de como a vida boêmia, bem como a própria prostituição no recife esteve, por muito tempo, atrelada economicamente a Igreja Católica. Digo isso, uma vez que tanto os donos das antigas boates, como as prostitutas que residiam e/ou realizavam os programas nos antigos casarões, eram em verdade inquilinos da Santa Casa de Misericórdia.



Para se entender melhor a dinâmica e o panorama de como a prostituição se desenvolveu e se mantém enquanto prática comercial institucionalizada em Recife se faz necessário considerar a influência dos fatores sociais e econômicos da capital, que destacados em tal entrevista me atrevo a reproduzir alguns trechos adiante. Na questão econômica, por exemplo, o Porto do Recife, figurou por muito tempo como impulsionador da prostituição, possibilitando a circulação de clientes nacionais e estrangeiros, garantindo a viabilização e a manutenção do desenvolvimento de práticas sexuais comerciais na região.



Com “o porto lotado de navios de várias nacionalidades... Tudo se cambiava por dólar", e a participação de estrangeiros na exploração da prostituição feminina, bem como no comércio local, fica evidenciado ao se constatar, por exemplo, que “quem explorava o Chanteclair eram dois portugueses, os irmãos Amorim”. Segundo Pereira, “eles ficaram ricos cobrando ingressos para se entrar no Chanteclair... o Gambrinus funcionava embaixo, como os outros estabelecimentos... e lá tudo mundo ia: usineiros, políticos, poetas e putas” (Cf. Motta, 2002).



Quanto às relações erótico-afetivas que se estabeleciam de forma mais estável entre as prostitutas e alguns clientes, destaca-se o fato de que “várias mulheres se casaram com ingleses e franceses, pois tudo se cambiava com dólar”. Esses casamentos e parcerias fixas, muitas vezes, favoreciam a mudança de status social das prostitutas que se tornavam “mulheres de bem” ou se estabeleciam como negociantes e/ou cafetinas.



“Teve uma, chamada Maria Matulão, que casou com um holandês e anos depois apareceu aqui já com os filhos criados. Sim, muitas se casavam. Algumas tinham as despesas da pensão pagas por usineiros. Muitos deles, quando enviuvavam, se casavam com elas. A Maria Magra foi prostituta aqui mesmo e depois virou dona de pensão. Casou com um comandante da marinha mercante, suíço ou sueco, está bem, morando num apartamento à beira-mar!” (Pereira; Cf. Motta, 2002).



Assim observa-se que dinâmica da prostituição no bairro era descrita ressaltando certo glamour saudosista, aliado ao requinte das prostitutas da época:



“As prostitutas do meu tempo, até os anos 60, não eram iguais às de hoje, não! Que andam de bunda de fora, de alpargatas ou de pé no chão. Elas andavam vestidas de longo, bom sapato e perfume francês. Só podiam descer da pensão a partir das nove horas da noite e ficar até as cinco da manhã, por determinação da polícia. Pra ser prostituta tinha que ter gabarito!” (Pereira; Cf. Motta, 2002).



As questões geográficas e espaciais, perfil dos clientes, status sócio-econômico dos mesmos, bem como o processo de naturalização da prostituição enquanto “ofício” e meio de circulação de renda no bairro, também é destacado:



“Todos os prédios eram da prostituição. A prostituição acompanhou a decadência do Porto do Recife. Isto aqui era cheio de vuco-vuco ou rendez-vous, como a gente chamava na época... a freqüência nos puteiros era muito misturada. O que mandava era o dólar, mas havia alemães, franceses, coreanos” (Pereira; Cf. Motta, 2002).



Já em relação aos processos de territorialização e mobilização da prostituição, ambos parecem diretamente relacionados a fatos e acontecimentos históricos nos quais a intervenção pública se fez presente. Inicialmente as prostitutas circulavam pelas ruas do centro, entre elas a:



“Rua Duque de Caxias, Rua das Flores, ali pelo Mercado São José e na Rua do Diário de Pernambuco. Em 1948, o chefe de polícia, Ramos de Freitas, transferiu as mulheres do Centro da cidade para o Bairro (Recife Antigo). Mas hoje elas estão voltando para lá” (Pereira; Cf. Motta, 2002).



Com a revitalização do Bairro Antigo a prostituição feminina voltou a ocupar os antigos espaços concentrados nos Bairros de São José e Santo Antonio. A Praça da Independência, conhecida como Pracinha do Diário, concentra hoje o maior número das prostitutas antigas, mulheres de meia idade, que se espalham ainda pela Rua da Concórdia e Av. Dantas Barreto. Um pouco mais afastados do centro, alguns espaços foram se estabelecendo como pontos de prostituição, entre estes, a Praça Sergio Loureto, a Praça de Afogados e trechos da Av. Norte (que hoje se chama Av. Norte Miguel Arraes, coincidência?).



Os riscos e a violência inerentes ao baixo meretrício e ao mundo da prostituição, bem como o processo de definição das áreas para atuação das prostitutas, pareciam ser definidos por subcategorias internas, assim:



“Não havia violência. Existia o batedor de carteira, o brigão que começava a beber... tinha a Rua da Guia, que era a região das prostitutas mais barra-pesada, mulheres valentes, todas cortadas de navalha” (Cf. Motta, 2002).



O processo de territorialização estabelecia uma segregação social que parecia explicitar o status social tanto das prostitutas quanto de seus clientes:



“Só quem ia com aquelas mulheres eram estivadores, indivíduos ignorantes que pegavam no pesado” (Cf. Motta, 2002).



Algumas generalizações relativas à identidade sexual e clandestinidade da prostituição também são explicitadas no testemunho do antigo boêmio empreendedor:



“tinha o Bacalhau, homossexual, que morava na Rua da Guia... O Lolita brigava com três policiais, lutava capoeira, e escapava de ser levado preso. Ele entrava sempre no Gambrinus pedindo dinheiro. Era moreno baixinho, mataram na Bahia. Um casal estava caminhando e ele passou a mão no rosto do homem. O cidadão levantou o paletó, tirou o revólver e deu dois tiros... Tem a Tereza, que hoje a gente chama de puta velha, mas na época ela não era assim não, gordona, era muito bonita e valentona, faturava feito o diabo. Mora até hoje aqui no Bairro! Ela diz que só sai daqui quando morrer” (Cf. Motta, 2002).



E por fim, a questão política aparece diretamente relacionada à decadência atual do baixo meretrício em Recife, como também ao fechamento do Bar Gambrinus, através da administração conservadora do então ex-prefeito Roberto Magalhães, que para o antigo proprietário, não valorizava a região. Neste sentido ele sentencia: "Mas, como confiar em quem não bebe, não fuma e não trepa?" (Cf. Motta, 2002).



Conclui-se então, que a prática sexual comercial sempre esteve presente na sociedade brasileira, gerando até os dias atuais exaustivas e polêmicas discussões. Aos pressupostos religiosos foram somados os discursos médicos, legais e higienistas, como forma eficaz no controle das condutas anti-sociais, anti-higiênicas e desmoralizantes praticadas pelas prostitutas. Ideais fundamentados numa concepção de prostituição enquanto ameaça a construção da família e às expectativas de edificação do Estado. Foi assim que o final do século XIX, e o início do XX, se configuraram como marco para a concepção brasileira da prostituição como mal necessário à preservação da moral da família burguesa, demarcando ainda o inicio do seu processo de criminalização e ameaça a vida social.



Era o fim dos anos dourados da prostituição brasileira e da boemia e irreverência do Recife antigo. Na década de oitenta, as práticas sexuais comerciais se expandiram pela Rua da Concórdia, que da minha janela, num terceiro andar de um prédio esquisito, pude observar, acompanhar e registrar todas as noites por aproximadamente dez anos. Mais isso ficará para o próximo capitulo.

REFERENCIAS:

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CASTRO, Francisco J. Viveiros de. Os delitos contra a honra da mulher. Rio de Janeiro, Freitas Barros. In: MAZZIEIRO, João Batista. 1998. Sexualidade criminalizada: prostituição e outros delitos. Revista Brasileira de História. Vol. 18, nº3 5 – São Paulo, 1932.

CAVALCANTI, Carlos Bezerra. O Recife e seus bairros. Recife/PE. Memorial Pernambucano, 1998.

COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro, Editora Graal, 2004.

GUIMARÃES, Kátia; Merchán-Hamann, Edgar. Comercializando fantasias: a representação social da prostituição, dilemas da profissão e a construção da cidadania. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, Vol. 13, 2005.

MAZZIEIRO, João Batista. Sexualidade criminalizada: prostituição e outros delitos. Revista Brasileira de História. Vol. 18, nº3 5 – São Paulo, 1998.

MOTTA, Sidney. Papo cabeça com profissionais do sexo. Edição: Beijo da Rua, 2002.

PASINI, Elisiane. Sexo para quase todos: a prostituição feminina na Vila Mimosa, Cadernos Pagu, nº 25, 2005.

RAGO, Margareth. Feminizar é preciso: por uma cultura filógina. São Paulo/SP, Perspec., vol 15, nº 3, p. 53-66. ISSN 0102-8839, 2001.

RUBIN, Gayle. Notas para uma teoria radical da política da sexualidade. Original: Thinking Sex – notes for radical theory of the politics of sexuality, in Pleasure and Danger: exploring female sexuality, Carole s. Vance, org.. London, Routledge and Paul, 1984.

VAINSENCHER, Semira Adler. O Recife antigo. Recife/PE. Fundação Joaquim Nabuco. (http://www.fundaj.gov.br/notitia/servlet/newstorm.ns.presentation.NavigationServlet?publicationCode =16&pageCode=312&textCode=3129). 23/06/08: 14:07.

4 comentários:

  1. gostei muito do seu trabalho de pesquisa, sou aluna de outra faculdade em Recife gostaria de trocar uma idéia sobre o tema, pois farei um projeto fotografico relacionado ao memso.

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  2. Parabéns pelo blog! Tenho muita dificuldade de me concentrar em leituras, mas os seus textos me prendem! Abraço

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  3. Texto muitíssimo bom. Confesso que é um assunto que muito me interessa. A prostituição feminina no Recife, com pano de fundo o Chanteclair, daria um bom romance histórico. Bem... Palco de muita pesquisa e, se como você diz da falta de material, dificuldade, mas seria impressionante.

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  4. excelente trabalho se precisar de de informações sobre a prostituição dos anos setenta do século passado , o meu hotmaile: dr.carlosadv@hotmail.com

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